Os Navegantes Austronésios e o Mistério do Povo das Árvores

Por volta de 2000 a.C., imagine um pequeno grupo de navegantes lançando suas canoas ao mar desde as costas de Taiwan. Esses eram os austronésios, antepassados dos polinésios, malaios e tantos outros povos oceânicos. Impulsionados pela curiosidade e pelas velas triangulares de suas embarcações, eles iniciaram uma das maiores migrações da pré-história. Entre 3000 e 1500 a.C., essas canoas já cruzavam centenas de quilômetros de oceano, levando famílias inteiras para ilhas distante. Por volta de 2200 a.C., chegaram ao norte das Filipinas (Ilhas Batanes). Ali, ao pisarem em novas praias, depararam com rostos diferentes dos seus. Eram os habitantes originais daquelas terras: povos de pele escura que ali viviam havia milhares de anos.

Esses primeiros nativos que os austronésios encontraram eram de estatura baixa, pele bem escura e cabelos encaracolados. Caçadores e coletores habilidosos, moviam-se silenciosamente pela selva espessa. Hoje, agrupamos essas populações sob o nome de negritos – povos como os Aeta nas Filipinas ou os Semang na península malaia. Seus ancestrais haviam chegado à Ásia muito antes, dezenas de milhares de anos atrás, e sobreviviam em grupos isolados nas florestas tropicais. Os austronésios chamaram-nos de orang asli, expressão na língua malaia que significa “povo original”, reconhecendo-os como os habitantes mais antigos da terra. (Em malaio moderno, orang ou urang quer dizer “gente” e asli equivale a “original/nativo”.) Houve confronto em alguns lugares, mas também convívio: ao longo dos séculos, essas populações se misturaram. Os recém-chegados austronésios assimilavam os grupos nativos (ou eram por eles assimilados), aprendendo rotas de caça e segredos da floresta, enquanto legavam aos negritos partes de sua língua e cultura.

Impulsionados por ventos favoráveis e um crescente domínio náutico, os austronésios continuaram sua expansão pelas ilhas do sudeste asiático. Avançando para o sul, alcançaram as grandes ilhas de Borneo e Sumatra, e dali seguiram para o leste, cruzando o equador rumo a Sulawesi e ao arquipélago de Nova Guiné. Nesses locais, encontraram outro grupo humano distinto: os melanésios. Eram povos de pele tão escura quanto a dos negritos, porém geralmente mais altos e robustos, com cabelos crespos ou ondulados. As aldeias melanésias – especialmente nas terras altas da Nova Guiné – já cultivavam raízes como inhame e taro, e domesticavam porcos muito antes da chegada dos visitantes. Os papuas da Nova Guiné, ancestrais dos melanésios, falavam línguas totalmente diferentes (não austronésias) e tinham estilos de vida variados: algumas tribos viviam da horticultura em clareiras na selva, outras da pesca e coleta costeira. Os encontros entre austronésios e melanésios foram tão significativos que os dois povos deixaram descendentes mestiços: as cerâmicas da cultura Lapita, datadas de cerca de 1200 a.C., marcam a presença austronésia já misturada ao sangue papuano nas ilhas ao leste da Nova Guiné Esses navegantes lapita logo levariam a cultura austronésia até Fiji, Samoa e Tonga (cerca de 900–800 a.C.), plantando as sementes do que viria a ser a civilização polinésia.

E a Austrália, ali tão próxima de Nova Guiné? Os vastos desertos australianos permaneceram em relativo isolamento, habitados exclusivamente pelos povos aborígenes por milênios. Os austronésios quase não tocaram aquelas costas – quase. Há indícios sutis de um contato antigo: o dingo, o cão selvagem australiano, não é nativo daquele continente. Restos arqueológicos sugerem que cães domesticados chegaram à Austrália por volta de 3.500 anos atrás (talvez cerca de 1500 a.C.), trazidos por humanos através do mar. Em outras palavras, marinheiros austronésios ou de culturas vizinhas provavelmente desembarcaram no norte da Austrália, deixando ali alguns de seus cães (que se tornaram os dingos) antes de seguir viagem. Séculos mais tarde, já no período histórico, sabemos que pescadores makassares (da Indonésia) navegavam regularmente até a costa do noroeste australiano para coletar pepinos-do-mar, interagindo e comercializando com os aborígenes locais. Mas, na antiguidade, fora a pegada silenciosa dos dingos, os austronésios concentraram-se nas ilhas tropicais e nas novas sociedades que ali floresciam.

Ao longo dessas jornadas, a identidade dos viajantes também mudava. Novas línguas foram surgindo em cada ilha colonizada, ramificando-se da tronco austronésio original. A língua malaia e a indonésia (ambas de origem austronésia) preservam até hoje termos que refletem aqueles encontros antigos. Já vimos orang asli (“povo original”) para designar os aborígenes das florestas. Curiosamente, usaram a mesma palavra orang (pessoa) para nomear algo inesperado que encontraram nas selvas de Sumatra e Bornéu – algo que parecia gente, mas não era. Os viajantes austronésios que adentravam as profundezas da floresta tropical ouviam histórias estranhas dos habitantes locais. Histórias de um povo misterioso que vivia nas árvores.

No coração de Bornéu, um experiente guia da etnia Dayak conduz um grupo de exploradores rio acima. As canoas deslizam pela água escura, cercadas por um muro de árvores centenárias. Ao anoitecer, a comitiva acampa à margem do rio, e em torno da fogueira o guia conta antigas lendas de seu povo. Fala de espíritos da floresta e de criaturas meio humanas. Sussurra sobre os Uram, um povo silencioso que raramente desce ao chão. Dizem que seus corpos são cobertos de pelos avermelhados e que eles possuem uma força descomunal. Um dos viajantes austronésios, intrigado, pergunta quem seriam esses seres – seriam homens, macacos ou fantasmas? O ancião Dayak sorri enigmático, sem responder diretamente. Em vez disso, narra um mito antigo: segundo a lenda, quando Derato (o Criador) tentou fazer o primeiro homem a partir do barro, o molde não saiu perfeito – dele surgiram os homens das árvores, seres quase humanos porém condenados a viver entre os galhos. Somente na segunda tentativa Deus conseguiu criar a humanidade como a conhecemos. Outro ancião acrescenta uma história que ouvira de comerciantes malaios: esses estranhos habitantes da selva podem falar a língua dos homens, mas evitam fazê-lo para não serem capturados e obrigados a trabalhar nas aldeias. Os viajantes se entreolham, alguns incrédulos, outros temerosos. Será verdade? Há realmente um povo escondido na floresta, dotado de linguagem e inteligência, tão próximo e ao mesmo tempo invisível?

Os dias seguem e a expedição se aprofunda na ilha. A floresta parece ganhar vida – rangidos, sombras entre os ramos altos, frutos que caem sem aviso. Certa tarde, o grupo escuta um balançar de galhos acima. Todos congelam. Lá no alto, filtrada pela luz dourada do sol poente, uma silhueta se move. Dois braços longuíssimos seguram-se em cipós; o corpo balança com incrível graça entre as árvores. Os viajantes vislumbram um rosto – há algo de humano nele, mas também de animal. Os olhos escuros e atentos encaram o grupo por um instante breve. Um macho gigantesco, coberto de pelos cor de fogo e com uma espécie de grande barba sob o queixo, observa os intrusos. Quase todos prendem a respiração. Então, num piscar de olhos, a figura desaparece por entre a copa, sem ruído, como um fantasma do dossel. Os moradores locais cochicham entre si uma palavra reverente: orang hutanhomem da floresta.

Legenda: Um grande macho orangotango nas florestas de Bornéu – silencioso, peludo e de barba ruiva. Visões assim podem ter dado origem aos contos sobre um “povo das árvores” misterioso.

Esses encontros produzem mais perguntas do que respostas. Estariam os viajantes diante de uma espécie desconhecida de humanidade ou de um animal extraordinariamente parecido conosco? A curiosidade inicial cede lugar ao respeito – talvez seja melhor deixar o “povo das árvores” em paz, dizem alguns, temendo perturbar espíritos guardiões da selva. Com o tempo, porém, a verdade vem à tona. Os “homens das árvores” não construíam cabanas nem forjavam ferramentas de metal. Não acendiam fogueiras nem cultivavam plantações. Eles não eram humanos afinal – eram grandes primatas. Séculos depois, estudiosos ocidentais os classificariam como orangotangos (orang-utan), uma espécie de macaco antropoide exclusiva das ilhas de Sumatra e Bornéu. O próprio nome dado a eles em malaio reflete a confusão original: orang hutan significa literalmente “homem da floresta”, denominação inspirada em sua aparência humanóide e hábitos arbóreos. (Nas pronúncias locais antigas, às vezes escrito como ouran ou uram utan, daí derivações como “Uram Utam” mencionadas em certos relatos.) Aqueles austronésios, sem saber, batizaram o animal como gente, ecoando as lendas que ouviram. O misterioso povo das árvores enfim revelado: eram os orangotangos – nossos tímidos primos ruivos pendurados nos galhos da floresta, protagonistas silenciosos de mitos e maravilhas nas tradições austronésias.

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